Fundo de pensão é instituição financeira?

Por Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr.*

A pergunta soa simples, mas exige uma resposta absolutamente complexa. Como muitas questões jurídicas do viver, a simplicidade fática é apenas uma fantasia para complexidade expressiva das explicações. Nesses casos, a experiência aconselha uma cautela crítica que consiga despir a realidade de suas roupagens superficiais, garantindo a lisura interpretativa e a consequente aplicação escorreita da lei.

Ocorre que a densidade do debate jurídico de envergadura é capaz de possibilitar o surgimento de duas ou mais posições sustentáveis, dentro de um critério de justiça material constitucionalmente aceitável. Isso acontece porque a normatividade constitucional é dotada de princípios hermenêuticos abertos que visam resguardar a atualidade da Constituição frente à dinâmica natural dos fatos da vida. Assim sendo, quando nos deparamos com os chamados “hard cases”, são as circunstâncias do caso concreto que determinam as regras e princípios jurídicos que devem prevalecer, competindo à fundamentação decisória ser tecnicamente persuasiva do acerto, necessidade e ponderação da solução aplicada à espécie.

Pois bem. Os tribunais superiores vêm entendendo que os fundos de pensão integram, por equiparação, o sistema financeiro nacional. Consequentemente, os eventuais atos de gestão temerária de entidades previdenciárias privadas poderiam configurar crimes contra a ordem financeira, nos termos propugnados pela Lei nº 7492, de 1986. Tanto o Supremo Tribunal Federal (STF), quanto o Superior Tribunal de Justiça (STJ), já se pronunciaram sobre o cabimento da referida sanção penal contra gestores de previdência complementar. No entanto, é sabido que nem tudo são flores no paraíso da Terra e, a nosso sentir, tal linha jurisprudencial merece ser revista à luz de outros elementos normativos que não estão sendo alvo do devido enfrentamento.

Inicialmente, cumpre lembrar que o STF, em sessão plenária de 18 de dezembro de 1991, no julgamento da ação declaratória de inconstitucionalidade nº 504-9/DF, de relatoria do ministro Paulo Brossard, deferiu medida cautelar para suspender a eficácia do artigo 29 da Lei nº 8177, de 1991, que equiparava as entidades de previdência privada a instituições financeiras. Ora, tal decisão, transitada em julgado, não pode simplesmente ser ignorada, pois não se trata de um nada jurídico. Além disso, é lição antiga que o ordenamento jurídico possui uma necessária coerência interna, ou seja, eventuais decisões antitéticas rompem a inerente unidade normativa da Constituição, prestando homenagens à insegurança e intranquilidade jurídica.

A Constituição refuta a equiparação de fundos de pensão a bancos

O caráter sistêmico da ordem constitucional não permite que o regramento seja subjetivamente picotado ao bel prazer do intérprete. Aliás, se o STF já analisou a matéria em controle abstrato da constitucionalidade, suspendendo a eficácia normativa da equiparação de fundos de pensão com instituições financeiras, ir de encontro a tal linha hermenêutica também é desrespeitar o efeito erga omnes e vinculante dos pronunciamentos de inconstitucionalidade em tese.

Há, ainda, outro aspecto normativo fundamental: as entidades de previdência complementar pertencem ao Título VIII da Constituição, relativo à ordem social. Ao versar especificamente sobre a previdência privada, o artigo 202 da Lei Magna determinou que os fundos de pensão – complementares e autônomos ao regime de previdência oficial (INSS) – deveriam ser regidos por lei especial. E a Lei Complementar nº 109, de 2001, em nenhum momento, linha ou entrelinha disse que os fundos de pensão pertenceriam ao sistema bancário. E se a lei não disse, não pode o intérprete dizer palavras despidas do necessário amparo legal. Convém, ainda, notar que a ordem econômica e financeira está regulada no Título VII da Constituição (artigo 170 ao artigo 192), ou seja, os fundos de pensão não estão incluídos em tal regramento nem sujeitos aos princípios constitucionais formadores das instituições financeiras.

Resta claro, assim, que a própria lógica interna da Constituição refuta a equiparação de entidades de previdência privada a bancos. Se assim o fez, é porque não há como equiparar desiguais, pois, do contrário, se estaria a agredir a natureza das coisas. E tudo que contraria a ordem natural da vida, cedo ou tarde, expõe aquilo que mal está. É óbvio que a irresponsabilidade gerencial das entidades de previdência privada deve sofrer as devidas sanções legais. Não se defende, aqui, a impunidade administrativa. Mas, para punir bem, é preciso saber quem, o que e de que forma punir. Afinal, a punição desmedida é tão danosa quanto à ilicitude praticada.

Em fechamento, é imperativo colocar cada instituto jurídico em seu devido lugar, analisar as regras e princípios potencialmente aplicáveis e invocar a lei como um instrumento de justiça a serviço da razão pensante. Dentro dessa linha hermenêutica, é possível dizer que punir penalmente dirigentes de entidades de previdência privada, como se fossem instituições financeiras, atende apenas aos interesses ocasionais de justiceiros fardados sem a justiça da lei. E lei sem justiça é o injusto legal ou o justo ilegal. Isso pode ser tudo, menos constitucional. Ou será que a Constituição pode albergar injustiças e ilegalidades?

*Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado, especialista em direito do Estado (UFRGS) e em direito previdenciário (UCS) e certificado pelo Programa de Negociação da Harvard Law School para Senior Executives.

jornal Valor Econômico – 27/09/2012

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